O Banqueiro Anarquista (1935)
*Tínhamos acabado de jantar. Defronte de mim o meu amigo, o banqueiro, grande comerciante e açambarcador notável, fumava como quem não pensa.
27²D-2 | Ms.Em torno de nós o restaurante calava-se, já quase deserto. Havíamos falado muito, e demorados, mas agora a conversa, que viera arrefecendo, jazia inerte entre nós.
Tentei reanimá-la com uma recordação que de repente me surgiu a respeito dele.
Ergui a cabeça e fitei-o, sorrindo, duplamente calmo, quedo.
27²D-5 | Ms.— É verdade: disseram-me aqui há dias uma coisa com piada a respeito de você.
—A meu respeito?Var.: O que era? Coisa boa não era naturalmente.
— Nem boa, nem má. Simplesmente, achei-lhe piada. Disseram-me que você em tempos foi anarquista.
— Está errado, mas o que está errado é o «foi». Fui anarquista e sou anarquista.
— Essa é melhor ainda! … Então você … Ah, já compreendo: você é anarquista teórico. Você acha a doutrina anarquista boa, mas ou a acha inviável, ou pelo menos, inviável para você, na sua vida de banqueiro e grande comerciante.
— Não é nada disso. Sou anarquistanaVar.: em teoria e sou anarquista na prática. Sou banqueiro e grande comerciante nãoapesar de ser anarquista, masporque sou anarquista.
— Agora é que não percebo nada. Você estabelece entre o seu anarquismo e o seu negócio uma relação, por assim dizer, de causa a efeito.
27²D-6/7 | Ms.— Não é por assim dizer: é assim mesmo. Fiz-me banqueiro e grande comerciante em obediência – obediência consciente e propositadaVar.: orientada – aos meus princípios anarquistas.
Senti-me boquiaberto. Passei a mão lentamente pela testa, como para tirar um véu de pasmo, e consegui falar.
— Olhe lá: isto aqui há qualquer trapalhada. O mais natural é uma coisa que muitas vezes acontece em discussões: uma questão de definição.
— De definição como?
— Assim: estamos falando em anarquismo sem definir a palavra. Não nos entendemos, ou pelo menos, eu não o entendo. O mais certo é você entender por anarquismo uma coisa e eu entender outra … Diga-me o que entende por anarquismo.
— Por anarquismo entendo aquela doutrina social extrema queproclamaVar.: contende que não deve haver entre homens outra diferença ou desigualdades senão as naturais, nem pesarem sobre os homens outras peias ou outros males senão os que a própria Natureza dá … A abolição, portanto, de todas as castas, da aristocracia, do dinheiro, de todas as convenções sociais que promovam a desigualdade. A abolição, também, de todas as convenções sociais contra a Natureza, as pátrias, as religiões, o casamento … Não era isto que você entendia por anarquismos?
— Oh, homem, por desgraça, do meu juízo, era isso mesmo. Oiça: estou doido?
O banqueiro sorriu.
— E você quer curar-se? Se quer eu curo-o. O tratamento é um pouco longo mas dá resultado.