Álvaro de Campos
Nota Preliminar
Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.
Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual.
A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva, que não implique, ao menos, o esboço de uma idéia.
Poderá alegar-se, por exemplo, que a exclamação pura -"Ah", digamos — não contém elemento algum intelectual. Mas não existe um"ah", assim escrito isoladamente, sem relação com qualquer coisa de anterior. Ou consideramos o"ah" como falado e no tom da voz vai o sentimento que o anima, e portanto a idéia ligada à definição desse sentimento; ou o"ah" responde a qualquer frase, ou por ela se forma, e manifesta uma idéia que essa frase provocou.
Em tudo que se diz — poesia ou prosa — há idéia e emoção. A poesia difere da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projetar a idéia em palavras através da emoção. Esse meio é o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém meno que uma só não creio que possa ser.
A idéia, ao servir-se da emoção para se exprimir em palavras, contorna e define essa emoção, e o ritmo, ou a rima, ou a estrofe, são a projeção desse contorno, a afirmação da idéia através de uma emoção, que, se a idéia a não contornasse, se extravasaria e perderia a própria capacidade de expressão.
É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar de emoção. A idéia serve a emoção, não a domina. E o homem — poeta ou não poeta — em quem a emoção domina a inteligência recua a feição do seu ser a estádios anteriores da evolução, em que as faculdades de inibição dormiam ainda no embrião da mente. Não pode ser que arte, que é um produto da cultura, ou seja do desenvolvimento supremo da consciência que o homem tem de si mesmo, seja tanto mais superior, quanto maior for a sua semelhança com as manifestações mentais que distinguem os estados inferiores da evolução cerebral.
A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela, a subordinação do tumulto em que a emoção naturalmente se exprimiria (como verdadeiramente diz Campos) ao ritmo, à rima, à estrofe.
Como estado mental, em que a poesia se forma, é, deveras, mais emotivo que aquele em que naturalmente se forma a prosa, há mister que ao estado poético se aplique uma disciplina mais dura que aquela [que] se emprega no estado prosaico da mente. E esses artifícios — o ritmo, a rima, a estrofe — são instrumentos de tal disciplina.
No sentido em que Campos diz que são artifícios o ritmo, a rima e a estrofe, se pode dizer que são artifícios: a vontade que corrige defeitos, a ordem que policia sociedades, a civilização que reduz os egoísmos à forma sociável.
Na prosa mais propriamente prosa — a prosa científica ou filosófica —, a que exprime diretamente idéias e só idéias, não há mister de grande disciplina, pois na própria circunstância de ser só de idéias vai disciplina bastante. Na prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das idéia